O novo commodity do design
Dois casos mostram o potencial da poeira como um material inusitado ao alcance de todos.
por Bruno Simões
A revolução da economia circular não é tema novo. Nas últimas décadas a questão do desperdício de energia, de recursos; e seus impactos sociais, ambientais e econômicos se tornou central à qualquer estratégia de produção consciente.
Desde 2002 o conceito se popularizou com a publicação do livro “Cradle do Cradle: Remaking the way we make things”, de Michael Braungart e William McDonough, mas isso não quer dizer que a causa foi prontamente abraçada. Ainda hoje luta-se para tornar tanto indústria como o consumidor mais responsável por seu papel na cadeia viciosa que nos conduziu até esse momento de saturação.
Nesse intervalo, muitos designers cumpriram com um papel importante na defesa de causas como o reuso ou reciclagem e promoveram um amplo entendimento de sustentabilidade pela sociedade, mesmo que na grande maioria dos casos acessando camadas superficiais de discussão - personificadas na madeira e no plástico.
O reflexo direto desses movimentos na cultura do móvel é uma produção contemporânea que evoluiu para além dos jargões e trata hoje da questão central - o desperdício. É fundamental otimizar processos e matéria-prima entendendo o ciclo de vida dos materiais. Isso porque, como apontei antes, o cenário é de saturação, então qual é a saída?
Para além do marketing como ferramenta ideológica, o que se vê com cada vez maior frequência são pesquisas inovadoras que exploram aspectos antes invisíveis ou ignorados. Nesse contexto vale conferir o livro recém-lançado “Wasted: When Trash Becomes Treasure”, da autora Katie Treggiden.
Um desses pontos invisíveis me parece muito simbólico - a poeira. São muitos os casos de projetos que exploram “as sobras” da indústria, mas em 2018 a designer inglesa Charlotte Kidger olhou para o microcosmos do pó de espuma de poliuretano gerado por cortes em máquinas de CNC e encontrou ali sua linguagem. A partir desse material aglutinado em resina ela cria peças de aspecto monumental que encantam pela mistura entre a estética primitiva e o domínio do uso da cor.
O resultado para ela: “O que é incrível é que agora as fábricas enxergam nos seus resíduos um recurso valioso para artistas e designers e estão começando a tomar responsabilidade por como reduzem, reusam e reciclam em sua cadeia”, conclui.
Mas é necessário ampliar a discussão, partir da indústria para a cidade. Aqui cabe mais um projeto e mais uma vez o pó como ponto de partida: o Smogware, formado por objetos em cerâmica criados pelas holandesas Annemarie Piscaer e Iris de Kievith.
As duas se conheceram justamente durante o fórum City Lab para discussão da qualidade do ar, em Roterdã, e a afinidade surgiu do estarrecimento com os dados apresentados: a cada dez anos os habitantes locais ingerem partículas de poluição pelo ar equivalente a 1 grama, o mesmo produzido por um automóvel em apenas 5 dias. (Me pergunto qual seria o valor numa cidade como São Paulo…).
Annemarie e Iris começaram então a coletar essa matéria-prima (infelizmente das mais abundantes) nos pontos de maior tráfego da cidade e experimentar como extrair cores ou algum tipo de acabamento da própria poluição para conscientizar o público através do design.
O resultado é um serviço de mesa formado por peças em cerâmica, como xícaras de espresso e pratos, em que atonalidade terrosa é garantida pela queima da poluição e esmalte incolor em alta temperatura, o que garante também a segurança à saúde para o uso. Dessa forma elas criam uma relação direta entre propósito e objeto para nos alertar daquilo que estamos ingerindo sem nem desconfiar.
Dentre as 6 tipologias outro fator as diferencia - a quantidade de pigmento depositada sobre cada uma, formando 5 tonalidades distintas. Para isso elas estabeleceram o próprio avanço da ingestão de poluição ao longo da vida como critério: 25, 45, 65 e 85 anos. Quanto maior o intervalo que a peça representa, maior a quantidade de pigmento e mais escuro se torna o tom.
O projeto não parou em Roterdã e hoje outras capitais como Amsterdã, Berlim, Milão e Pequim fazem parte do projeto, mostrando diferentes nuances de cor pelas particularidades da poluição de cada região e ampliando a discussão da qualidade do ar. Com uma simples xícara de espresso elas comparam o nível de poluentes aceitos na União Europeia e o que sugere a Organização Mundial de Saúde - o resultado é estarrecedor, de um lado um tom de areia e do outro um marrom profundo.
O sonho das designers é que a linha Smogware se esgote no futuro devido a falta de matéria-prima. Mas se são muitos os casos de políticas públicas avançando nesse sentido pelo mundo, o que vemos em paralelo é um movimento negacionista que pauta suas urgências com olho apenas no capital. Reside aí um dos papéis fundamentais do design: inserir ideias no cotidiano das pessoas para que utopia se torne realidade.
Fotos
por Charlotte Kidger e Roel van Tour